A renúncia de Evo Morales

Evo Morales, durante o anúncio da sua renúncia

Desde as eleições presidenciais de 20 de outubro, a Bolívia ganhou a atenção internacional. Durante o processo de apuração dos votos, uma série de incidentes levantaram suspeitas quanto à lisura do processo eleitoral, levando os observadores internacionais, em especial a Organização dos Estados Americanos (OEA) e a União Européia, a pedirem que fosse realizado um segundo turno das eleições. Diante das denúncias de fraude feitas pela oposição, e da pressão internacional, o governo pediu à OEA que fizesse uma auditoria no processo eleitoral e na apuração dos votos. Após concluída a auditoria, a OEA emitiu um relatório de 13 páginas, onde conclui que seria estatisticamente impossível que Evo Morales tivesse obtido a margem de dez pontos percentuais necessária para uma vitória no primeiro turno, além de terem sido constatadas falhas na segurança do processamento de votos e manipulação de dados, além de terem sido encontradas cédulas de votação adulteradas e com assinaturas falsificadas.

Mas os problemas que levaram o presidente Evo Morales a renunciar, são muito mais abrangentes e antigos do que pensamos. Embora só agora a situação tenha atingido o ponto de ebulição, ela vem sendo aquecida há tempos, por várias medidas arbitrárias tomadas pelo governo boliviano. No poder desde 2006, Morales conseguiu aprovar em 2009 uma emenda constitucional, que permitiria a reeleição para dois mandatos consecutivos, o que lhe abriu o caminho para se candidatar e se reeleger em 2010 e 2014. Pela Constituição, ele não poderia se candidatar novamente este ano, mas em 2017 Morales obteve uma decisão do Tribunal Constitucional (o STF boliviano) que lhe permitia se reeleger indefinidamente. Vale lembrar que em 2016 foi realizado um referendo que lhe negou a possibilidade de nova reeleição, o que mostra que a Corte Constitucional, aparelhada, ignorou solenemente a vontade popular e o resultado do referendo, bem como a própria Constituição que deveria defender. Com o respaldo do também aparelhado tribunal eleitoral, Morales se candidatou a um quarto mandato consecutivo e tentava agora garantir o poder até 2025.

Achei interessante citar tudo isto, porque os fatos ocorridos na Bolívia nos mostram com clareza que o aparelhamento do sistema judiciário é um dos grandes entraves à democracia plena de um país, embora não seja obviamente o único. No Brasil acabamos de passar pela experiência de ver nosso Supremo Tribunal Federal ignorar os anseios e a segurança da população e aprovar o relaxamento do processo penal ao permitir a prisão de condenados apenas após o trânsito em julgado da sentença condenatória, o que em muitos casos significa impunidade, dada a lentidão e morosidade da nossa justiça. O clamor pela limpeza ética das instituições democráticas não é exclusividade do Brasil, a Bolívia é prova disto.

Após constatadas as fraudes no processo eleitoral, Evo Morales ainda tentou convocar novas eleições, mas nesse ponto o caldo já tinha entornado, com massivas manifestações nas ruas, onde o povo, mais notadamente a classe média e os universitários, enfrentou com valentia os membros dos sindicatos e dos movimentos sociais, que apoiavam o governo. Tanta falta de vergonha dos governantes levou o povo a um sentimento de revolta que já não podia ser controlado e para ajudar a aumentar ainda mais a fervura, as forças policiais se recusaram a reprimir os manifestantes e se levantaram em motim, ao lado do povo e contra o governo. No mesmo domingo em que Morales anunciava novas eleições, o general Williams Kaliman, falando em nome do alto comando das Forças Armadas da Bolívia, sugeriu que o presidente renunciasse ao seu cargo, o que veio a ocorrer no final do mesmo dia.

A Bolívia encontra-se em um momento muito perigoso. Embora haja um alívio por saber que um tiranete finalmente foi apeado do poder, resta agora a dúvida quanto ao futuro da democracia boliviana. A Bolívia pode caminhar na direção da democracia plena, fortalecendo o Estado de Direito e as Instituições democráticas, excluindo os membros corruptos que aparelham as suas instituições, lembrando que nem toda corrupção é financeira, existem os corruptos morais também; ou pode ser tomada por pessoas ainda piores que levarão a Bolívia a se tornar uma ditadura com o sinal ideológico trocado. Há ainda a chance de uma luta pelo poder levar a uma guerra civil, embora a chance pareça pequena neste momento. Todo o cuidado é pouco!

Lembremos o que aconteceu conosco em 1964, quando as Forças Armadas ouviram o clamor popular e derrubaram o governo, e o que era para ser um livramento da ditadura esquerdista acabou se tornando um regime militar que atacou vários pilares da democracia, ficando 21 anos no poder. Não era o que ninguém queria, mas foi o que acabou acontecendo.

Espero que os bolivianos tenham prudência e bom senso para conduzir a situação, não permitindo que vigaristas de qualquer natureza ideológica se aproveitem da situação para tomar o poder. E que nós brasileiros possamos aprender com eles, que a Democracia é feita com a participação do povo, com o respeito às suas decisões e à sua vontade expressa seja através das urnas, seja nas ruas ou redes sociais. Nenhuma Democracia é plena se a voz do povo é ignorada. Nenhuma Democracia pode ser plena enquanto existirem instituições aparelhadas, trabalhando em favor de objetivos contrários aos do cidadão. Precisamos limpar o nosso Legislativo, e principalmente o nosso Judiciário. Os tribunais não são fortalezas inexpugnáveis, e está na hora de ensinarmos isto aos nossos magistrados. Aos irmãos bolivianos, desejo que Deus os abençoe e conceda muita sabedoria, neste momento crucial de sua História!

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A prisão de Roberto Jefferson

Sejam Bem-vindos!

A demissão de Sérgio Moro